ColunistasCOLUNISTAS

Pedro Fagundes de Borba

Autor: Pedro Fagundes de Borba

Da época

12/1/2020 - Ribeirão Preto - SP

     Escrever sobre costumes é das melhores formas para se compreender a fundo uma época, pois são a forma com que os contemporâneos vivem seu dia a dia, como encaram a vida e passam por ela, sempre impregnados das formas e condições de suas épocas. Seus enredos sempre mostram algum momento destes, gerando ironias, senso histórico, comoção ou espelho do jeito cotidiano das pessoas. Antônio de Alcântara Machado foi muito feliz nesta arte, criando contos que mostram a época e sua vida diária, mostrando ocorrências, focando, principalmente, nos imigrantes italianos de São Paulo, como no livro "Brás, Bexiga e Barra Funda". Comento hoje o conto Carmela, o terceiro. 

    Carmela saía com Bianca da oficina onde trabalhavam na Rua Barão de Itapetininga, a madama respeitava as horas de trabalho. Aquela rua era um depósito sarapintado de automóveis, as casas de modas despejavam as custureirinhas que riam, falavam alto ou balançavam os quadris como gangorras. 

    Foram espiar se estava na praça, não estava. Estaria, então, na praça de república, havia muitas pessoas ali mesmo, era um fiteiro, concluíram. 

    Carmela estava vestindo um vestido colado de organdi verde, de braços e colo nus, joelhos de fora, sapato verde. Para os lábios dos amadores, um bago de uva Marengo madura. 

     "Ai, que rico corpinho! Não se enxerga, seu cafajeste? Português sem educação!"

     Após os insultos, abre a bolsa e espreita o espelhinho que reflete a boca reluzente de carmim, o nariz, os fiapos de sobrancelha e as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas. 

     Bianca, estrábica, atua como sentinela da companheira, chamando a atenção para o automóvel passando, o caixa de óculos, chamando Carmela. Com uma bruta luva vermelha, acrescenta Bianca. 

     O caixa de óculos para o Buick de propósito na esquina da praça. 

     " Pode passar. Muito obrigada."

      Passa na pontinha dos pés, a cabeça baixa, toda nervosa, diz para Bianca não virar pra trás, a escandalosa. 

      Na frente de Álvares de Azevedo, talvez Fagundes Varela, com sapatos vermelhos de ponta afilada, meias brancas, gravatinha deste tamanho, chapéu a Rodolfo Valentino, paletó de um botão só, o Ângelo Cuoco espera há muito tempo, cansado de inspecionar a Rua Barão de Itapetininga. 

     " O Ângelo! Dê o fora."

      Bianca retarda o passo. Carmela continua, como se não houvesse nada. O Ângelo junta-se a ela como se também não houvesse nada. Só que sorrindo. 

      " Já acabou o romance? A madama não deixa a gente ler na oficina. É? Sei. Amanhã tem baile na sociedade. Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Não segura no braço. Enjoada."

      O Buick passa de novo na Rua do Arouche. Repassa. Torna a passar. 

      Respondeu a pergunta dizendo que não tinha como saber quem estava ali dentro. Bianca, então, lembrou que ela dava confiança para qualquer um; não devia olhar pra ele agora, ou ela arrumava uma encrenca.

      Vinte metros à frente, Bianca roía as unhas. Estaca. Dá-lhe boa tarde, lhe dizendo uma belezinha, e lhe pergunta onde morava a companheira. Após roer as unhas com apetite, diz que ao lado da casa, acrescentando, após o questionamento, que não era da conta dele onde ficava. Após ele perguntar de novo, sem se zangar, ela diz, bem como o nome de Carmela. O homem no caixa de óculos manda um recado para Carmela através de Bianca. A esperava na noite seguinte, na rua atrás da igreja Santa Cecília. 

      Carmela e Ângelo viram a cena, o último tendo ficado danado. Contou que o homem do caixa de óculos gostava dela. Disse que não iria na onda. Que fingida que você é, afirmou. 

      Carmela abre antes de se estender ao lado da irmãzinha, o romance "Joana a desgraçada" ou " A odisseia de uma virgem". Fica olhando as gravuras, reparando no castelo, pensando no príncipe que voltará. 

      " Eu só vou até a esquina da Alameda Glette. Já vou avisando. Trouxa. Que tem?"

      Sem tirar a mão do volante, o caixa de óculos insistia pela segunda vez. Pedia cinco minutinhos. Queria Carmela que Bianca, ali também, fosse com ela. Ele negou. Ela insistiu. Achando que não valia a pena brigar com ela, aceitou. Com Bianca atrás, foram andando. Só parou no Jardim América. 

      No domingo seguinte, Bianca encontra Carmela raspando a penugem que lhe une as sobrancelhas, com a navalha denticulada do tripeiro Giuseppe Santini. Após comentar os esforços da amiga para ficar bonita, esta lhe responde dizendo que queria falar com ela. No caso, ela não iria mais com eles. Ela o chama de pirata e comenta sobre Ângelo, que dizia estar Carmela ficando uma vaca. Após dizer que quebraria a cara dele, Bianca retruca afirmando que namorado de máquina não dá certo. Saíram à rua, onde encontraram Santini. Carmela e Giuseppe foram passear na Rua das Palmeiras. 

     Quando os olhos cheios de estrabismo e despeito deixaram de ver a lanterninha do Buick, Bianca resolve dar um giro pelo bairro. Encontra e conta tudo à amiga Ernestina, que pergunta sobre Ângelo. Respondeu que ele era outra coisa ,era pra casar. Hã, termina perguntando Ernestina. 

      Estavam vivendo de acordo com a época. Carmela tinha seus interesses e entrelaçamentos sociais. Não questiona muito as ações, mas se defende. Bianca também, embora tivesse personalidade diferente da amiga, mesmo para namoros. Giuseppe e Ângelo também, mesmo estando em partes mais privilegiadas. O segundo era mais correto, mais preoucupado que o primeiro, ainda. Vivem em São Paulo do começo do século XX, alguns descendendo de italianos. Dentro das questões e formas daquele tempo, dele participando vivamente, com forte influência das maneiras da época, por convicções, necessidades e relações sociais, vivem a vida. 

 

Compartilhe no Whatsapp