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Pedro Fagundes de Borba

Autor: Pedro Fagundes de Borba

Dançarinos

5/4/2020 - Ribeirão Preto - SP

   Edgar Allan Poe marcou o terror. Tendo sua produção literária majoritariamente voltada para o horror, as faces macabras do ser humano, sempre associado com uma densa visão de mundo marcada por histórias e episódios, fez das narrativas de terror algo moderno, forte para falar, espelho de aspectos piores dos humanos, o que também nos faz, principalmente determinados indivíduos; literarizando características, criando interpretações. Alguns destes estão muito bem expostos em “A máscara da morte rubra”, parte do livro “Histórias extraordinárias”.

  Devastou por muito tempo o país a “Morte Rubra”, a mais terrível e mortífera das pestilências. O avatar era o sangue, a vermelhidão e o horror de sangue seus sinais. Vinha com dores agudas e súbitas vertigens, seguidas por profusa sangueira pelos poros e decomposição. As manchas vermelhas no corpo estigmatizavam a vítima, isolavam-na da compaixão e solidariedade de seus semelhantes.

 O príncipe Próspero sabia-se feliz, intrépido e sagaz. Quando os seus domínios começaram a esvaziar, chamou um milheiro de amigos sadios e frívolos, escolhidos entre fidalgos e damas da corte, se encerraram em uma de suas abadias fortificadas. Era um edifício vasto, magnífico, excêntrico, majestoso, de forte muralha e portões de ferro cercando todos os lados. Lá dentro, rebicaram os ferrolhos os meios de ingresso dos desesperados e de escape aos de frenesi lá dentro. Estavam amplamente abastecidos. No final do quinto ou sexto mês de reclusão, a pestilência lavrando violentamente lá fora, o príncipe decidiu dar um baile de máscaras para entreter seus amigos.

  Cena voluptuosa essa mascarada. Era uma série imperial de sete salões, cada um com vidraças correspondendo com a decoração da sala. Apenas o sétimo não, forrado de veludo preto com vidraças vermelhas. Em nenhum havia lâmpada ou candelabro. Mas, nos corredores que acompanhavam as salas, frente cada janela, havia um trípode que sustentava dentro um braseiro cuja luz iluminava o aposento, proporcionando fantásticas e vistosas aparências. Na sala negra, produzia um efeito lívido, dando aparências tão estranhas para a fisionomia que poucos tinham coragem de ir além do umbral.

  Havia nele um gigantesco relógio de ébano, o pêndulo indo e vindo, num tique taque lento, pesado, monótono. O som que saía de hora em hora era limpo, agudo, extremamente musical e de timbres peculiares. A cada hora, a orquestra que tocava parava para ouvi-lo. Os dançarinos eram forçados também. Os mais afoitos empalideciam, os mais idosos e sensatos passavam a mão pela fronte, como em meditação confusa. O eco esvaído, um riso ligeiro percorria a assembleia. A despeito, a folia ia alegre e magnífica. O duque comandava, com seu gosto. Havia orientado as fantasias. Muito de belo, atrevido, bizarro, algo de terrível, fácil de provocar repulsas. Ninguém se atrevera a ir até a sétima sala. Durou até a meia noite.

  Depois da imobilidade e das doze badaladas, puderam meditar mais longamente, perceberam um novo mascarado, que até então não atraíra atenções. Entre murmúrios, se propagou a notícia de uma nova presença. Elevou-se um zum zum zum, um rumor a princípio de surpresa e desaprovação, horror e náusea depois. Na assembleia de fantasmas, tal agitação não seria causada por aparição vulgar. O convidado excedia a extravagância do próprio Herodes. Tem fibras no coração dos levianos que não podem ser tocadas impunemente. Todos os convidados pareciam se dar conta de que nos trajes e atitudes do estranho nada havia de espirituoso ou conveniente. Figura alta e lívida, coberta de mortalha da cabeça aos pés. A máscara escondendo as feições imitava com tanta perfeição a rigidez facial de um cadáver que nem um exame mais atento perceberia o engano. Tudo seria perdoado, não fosse a audácia de se disfarçar de morte rubra. Vestes salpicadas de sangue, ampla fronte e face cobertas de manchas escarlates.

  Os olhos do príncipe Próspero caíram sobre a figura espectral, ela andava com passos solenes e lentos, foi tomado por convulsões e arrepios, de terror ou asco.  Depois, congestionou de raiva. Quis saber quem o insultava com aquela brincadeira blasfema. Mandou que agarassem e desmascarassem, para saber quem enforcar no nascer do dia. As ordens vindas da sala azul ecoaram por todas. O príncipe cercado por cortesãos empalidecidos. No primeiro momento, o grupo foi em avanço ao intruso. Ninguém se atreveu a agarrá-lo. Ele se afastou, passando um metro de onde estava o príncipe. Como impulso, todos se afastaram dos centros das salas. Cruzou todas, o intruso. O príncipe cruzou apressadamente as seis, brandindo um punhal. O terror se apoderara de todos. Estava a quatro metros dele quando este se virou e o enfrentou. Ouviu-se um grito agudo e o punhal caiu no tapete negro, junto com o príncipe ferido de morte. Na selvática coragem do desespero, um grupo correu para a sala negra e agarrou o mascarado, descobrindo, horrorizados, não haver nenhuma forma tangível dentro da mortalha. Era a presença da morte rubra, viera como um ladrão na noite. Um a um, caíram os foliões conservando a mesma postura da queda. A vida do relógio se extinguiu simultaneamente, as chamas do trípode apagaram. Escuridão, ruína e morte rubra estenderam seu domínio ilimitado sobre tudo. 

  Marcado pela peste, o lugar mostra, dentro de um único ambiente, frivolidade em estado puro, os nobres protegidos. Viviam suas danças, suas batidas, seus fortes gostos, seguros. O príncipe Próspero a tudo comandava, mantendo os amigos sobre sua vontade, todos dançando em torno. O convidado intruso, que para onde quer vai, entrou, coberto de mortalha, a máscara de cadáver, pegou a todos, devastando a nata que sobrava para expandir seus domínios. A terra empesteada era agora toda.

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