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Pedro Fagundes de Borba

Autor: Pedro Fagundes de Borba

A charqueada e os viventes

19/4/2020 - Ribeirão Preto - SP

  O Brasil se fascina descrevendo suas próprias paisagens, por vezes desconhecidas ou esquecidas em grandes centros urbanos, ou mesmo não consideradas nestes espaços. São, no entanto, algumas de suas raízes mais densas, mais profundas, com os cotidianos mais crus. O gaúcho de São Gabriel, imortal da academia brasileira de letras, Alcides Maya, descreveu, em seu conto “Charqueada”, integrante da coletânea “Tapera”, volume de sua trilogia gaúcha, uma das instituições e mecanismo econômico importante historicamente para o Rio Grande do Sul, consequentemente para a pecuária brasileira.

  Entrara o verão, a safra abrira. A charqueada, antes fechada e erma, soturna, agora burburinhava na faina rubra das matanças, sob o sol adusto de janeiro.  A morte impava em golfantes caudais de cruor sadio, da alvorada á noite. Nutridos nas coxilhas. Estrebuchantes no saguão vermelho, a morte impava lá fora, extravasando, a borbotar, para o alagamento do lajeado, as rampas áridas, o líquido das lavagens. Tutanos escumados no óleo crasso das graxeiras. Derretiam-se com vapor as gorduras espessas.  Os tanques rasos se coloriam de coágulos. As mantas gordas retalhadas purpureavam nos varais.

  Soberana e sinistra, a morte impava, fertilizando terra, vibratilizando o ar, pompeando triunfal no chorume das plantas, rosado das faces, energia dos gestos, na voz altíssona, na densa nuvem de tavões e no voo negrejante dos corvos envolvendo o matadouro ecoante de mujidos.

  Um farto dia de labor ia começar quando a sineta chamava á cancha, no clarear d`alva. Ia-se carnear ensopar as mãos de sangue quente, tingir tinta a folha larga das facas, ganhar com aperientes de força e agonia, bem ganho, uma féria de álcool e gozo, para violentas contendas nos balcões das vendas e para o espasmo brutal no regaço das chinas. Atacava-se o trabalho e, como de uma estrumeira pululante, a vida rebentava a cavaleiro do rio múrmuro, com barrancas nuas e argilosas parecendo que efundiam sangue.

  A correnteza, toldada de imundícies, grossa aos despejos, tarda e turda, rolando fibrilhas, derivava em face. A terra das encostas, esfareladas ao movimento contínuo, misturava-se a líquida massa escura que descia. A paisagem esquissava-se; sempre nítida no primeiro plano, indeterminada e azul ao fundo, leve de leves transparências e adoçada em arcos de horizonte e dúlcidos contrastes suavíssimos.   

  Em frente e aos lados do casarão, ou para as bandas da estrada, com entrecortes e guazuma e campinas de trevo e cardo, que a charqueada mantinha seu sombrio aspecto.

 Faltava àquelas terras a frescura das relvas virgens e a graça ondeante das messes louras. Dominava o ervaçal. Perseverava a rolda negra dos abutres. Ao pé, a mole macabra das carnificinas. O cheiro corrupto voluteava em sobressalto instintivo. Às vezes, a voz solidária das boiadas recém-chegadas respondia ao berro trágico de um novilho alcançado no curral. Os gritos dos peões repercutiam, os ladros dos cães também.

 Continuava o massacre. Esperava, lá embaixo na aldeia suja, a catarva andrajosa das mulheres e filhos. À tarde, teriam a alegria de um brasido coruscante nos fogões pobres. E entre mate e água quente, a tava, o naipe e o toque morfanho das cordeonas. De noite, bruto sono. No outro dia, a sineta chamando à cancha, tudo novamente. Seria assim a vida inteira, todos os verões correndo assim, rolando grúmulos vermelhos e resíduos roxos, o rio a dessentar. À luz radiante das alvoradas estivas, e na poesia serena das tardes de ouro, o homem continuaria a matar, a matar, a matar.

 Falando desta forma econômica, deste sombrio lugar componente da economia brasileira, por isso também de muitos outros setores e características, Alcides Maya também consegue falar profundamente das características, condição humana enquanto brasileira, de maneira cotidiana, cada vivência, o que era em sua maneira mais crua, pura e existencial. Mostra a vida campeira como ela era, levando em consideração, seus detalhes, nuanças e como mostrava os seres humanos ali surgidos, cercados pelas condições econômicas e materiais, formados e conscientes do existente, cada qual a sua maneira.

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