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Pedro Fagundes de Borba

Autor: Pedro Fagundes de Borba

Os observadores

7/6/2020 - Ribeirão Preto - SP

     Em “Comportamento nos velórios” Julio Cortazar descreve uma família que acompanha enterros de defuntos com parentes vivos hipócritas. Com seu talento para a literatura e a visão de mundo incomum, muito forte na América Latina, o autor argentino mostra o evento transcorrido, os pontos mais comuns das vezes em que acontece.

  Iam não pelo anis ou porque era preciso ir. Mas porque não conseguiam tolerar as formas mais encobertas da hipocrisia. A prima segunda mais velha se encarregava de verificar a índole do luto, e se era verdadeiro. Nesse caso, ficavam em casa e acompanhavam de longe. No máximo a mãe dava uma passadinha e cumprimentava em nome da família. Caso vissem que os trípodes da falsidade se botavam, punham suas melhores roupas e iam, se apresentando aos poucos, implacavelmente.

 Na região onde moravam, chegavam e cumprimentavam os familiares, os que estavam sempre chorando, e eram escoltados até o caixão por algum deles. Uma ou duas horas depois a família estava na câmara mortuária. Embora os vizinhos os conhecessem muito bem, pouco falavam entre eles e faziam como se cada um tivesse vindo por sua conta. Método preciso ordenava seus atos.

  Não precisavam muito tempo para sondar os sentimentos dos parentes mais chegados. Copinhos de aguardente, mate doce e particulares light são a ponte confidencial. A irmã chorava próximo ao caixão até algumas mulheres terem de se encarregar dela. Quando os familiares do defunto se arrefecem, as primas desatam a chorar secamente, obrigando-os a se envolverem naquela aflição. Neste momento, ele e seus irmãos costumavam entrar na sala mortuária e se posicionar ao lado do ataúde. Eles, estranhamente, estão verdadeiramente desolados. Os familiares têm de recuperar o fôlego para fazer como eles, demonstrar que o velório é deles, só eles tem direito a chorar naquela casa. Eram poucos e mentiam, sabiam pela prima segunda mais velha.

  São agora substituídos pelos pais e tio mais velho, algo impõe respeito na dor daqueles velhos que vieram velar o vizinho. Os vizinhos mais coerentes passam a perder pé, indo para outros lugares. Alguns parentes extenuados vão dormir. Eles então se revezam em ordem, mas sem dar impressão de algo ensaiado. Se transformam nos donos incontestes do velório até as seis da manhã, o dia nasce no pátio. As tias organizam enérgicas merendas, tomam café fervente, se olham brilhantemente atravessando o vestíbulo ou os quartos. Chegada do carro fúnebre, as irmãs levam os parentes para se despedir do finado antes do fechamento do caixão. São por estes suportados e confortados até os irmãos e primas se aproximarem e deslocá-los, ficando sozinhos junto do morto.

   Na hora de ir embora, uma organização invisível sem fissuras determina cada movimento. Às ordens do pai, o ataúde é removido de acordo com as orientações do tio mais velho. Os parentes externam uma reivindicação despropositada e os vizinhos olham para eles, convencidos de como tudo deve ser, escandalizados e os obrigam a calarem-se.

   No carro enlutado, vão os pais e tios no primeiro, os irmãos no segundo e as primas aceitam alguns dos familiares no terceiro. O resto vai onde se arranjar. Alguns parentes se veem obrigados a chamar um táxi. No peristilo, os irmãos cercam o orador contratado pela família ou amigos.O tio, o orador não consegue evitar, faz um discurso de verdade e discrição. Quando desce, o irmão mais velho sobe e se encarrega do panerígico em nome da vizinhança, e o vizinho designado abre caminho entre as primas e irmãs que choram penduradas em seu colete. Um gesto afável e imperioso do pai mobiliza o pessoal da funerária. Os oradores oficiais ficam então em pé na tribuna, quando o catafalco começa a rolar. Geralmente não se dão ao trabalho de acompanhar o morto até a cripta ou a sepultura. Dão meia volta e saem todos juntos, comentando os acontecimentos do velório. Veem, afastados, os parentes brigando desesperados em empunhar uma das alças do ataúde e brigarem com os vizinhos, que se apropriaram das alças, preferindo eles mesmos se encarregarem, em vez dos parentes.

  A narração do velório, associada com o narrador, mostra todo um mundo, uma visão de um pequeno espaço, um pequeno transcorrido o qual, ao final, acaba sendo demonstração de uma forma viva que passa pela vida, no caso a não identificada família com seu hábito. Ali estão, acompanhando parentes aparentes, sem tanta emoção ou dor. Vastas formas vivas assim passam, tendo sempre particularidades incomuns, mostrando algo indescoberto do vivo, uma característica sempre capaz de mostrar algo desconhecido. Prova do desconhecido na vastidão do conhecido.

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