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Pedro Fagundes de Borba

Autor: Pedro Fagundes de Borba

O capitão da guerrilha

28/11/2021 - Ribeirão Preto - SP

           Poucas figuras conseguem ilustrar tão bem a política nacional, a posição e as forças de exército e as contradições e problemas do país quanto Carlos Lamarca. Sendo uma das significativas figuras da história brasileira recente, fez contribuições e ações que fazem que o Brasil seja visto em suas características sociais e políticas mais entranhadas, mais rotineiras e mais certas que ocorrem, como o país se organiza, de fato. Lamarca é, antes de tudo, um militar. Toda a questão do militarismo é decisiva para as relações políticas, geopolíticas e ideológicas nos países de hoje. Embora não possa agir sem a devida autorização de outros setores sociais, o exército possui um dos mais potentes poderes, o poder de fogo. Tal poder, usado principalmente para guerra e para defesa, consegue ter forças muito grandes, ameaçando e derrubando pessoas fisicamente.

           Para toda a organização social existente, tem um molde e uma forma de governo e de política que tende a se manter, a estruturar a sociedade, cultura, pensamentos e o jeito das pessoas se entenderem. Se não completamente, em boa parte, ao menos, as pessoas são formadas pelas culturas e estruturas sociais nas quais se encontram quando nascem e vivem. Para além, se organizam em países, que possuem culturas e estruturas sociais internas em si mesmas, baseadas em suas composições. O exército nacional é uma importante instituição em praticamente todos, pois significa a capacidade de reação ou ação perante outras, garantindo suporte e ordem externa e interna. Porém, os países e exércitos mais fortes determinam os destinos e ações dos mais fracos, garantindo mesmo a conduta e as posições militares dos dominados.     

           No caso brasileiro, em 1964, isto ficou mais evidente do que nunca. Uma vez que a função principal é proteger o país e seu governante, ali se voltou contra ele. Em sistemas democráticos, mesmo que burgueses, dizem alguns, a ideia é que se fortaleça a política e posição nacional com seu exército, garantindo o sucesso e a legitimidade daquele que governa. Porém, em um movimento orquestrado pelos Estados Unidos, a instituição se volta contra o país e seu presidente. O país passa então a viver uma forte ditadura, voltada para interesses estrangeiros e com violentas repressões aos opositores. Foi visivelmente um movimento de traição nacional.

           Carlos Lamarca entendia isso. Não foi o único membro das forças armadas brasileiras a se opor ao regime e ter ideias políticas diferentes. Mas, entre seus membros, foi um dos mais proeminentes no assunto. Teve, desde jovem, a pretensão de se tornar militar, o que efetivamente fez, ingressando em 1955, se tornando aspirante a oficial em 1960.  Seu pai era sapateiro e a mãe dona de casa, tendo ele vivido no Morro de São Carlos até os dezessete anos. Aos dezesseis participara da campanha “O petróleo é nosso”, através de manifestações de rua.  Defendia o ideal nacionalista sobre questões petroleiras. Tinha “Guerra e Paz” de Leon Tolstoi como seu livro favorito.

           Suas primeiras ideias socialistas em 1962, após integrar junto com o exército brasileiro o Batalhão Suez, no Canal de Suez, Egito. A experiência o marcou profundamente, ficando impressionado com a pobreza e realidade locais. Seu superior, que ditou as ordens ao batalhão, era o major Alcio Costa e Silva, filho do marechal que futuramente criaria o AI-5. Começa a ter seus primeiros interesses em autores marxistas a partir de então, vendo como a pobreza e as questões sociais eram reais, e o que as estrutura. Muito de suas visões políticas começam a florescer neste contexto.  De volta ao Brasil, servia em Porto Alegre quando ocorreu o golpe. Em dezembro daquele ano, deu fuga a um capitão brizolista, a qual estava sob sua guarda.

            Durante boa parte do começo da ditadura, não possuía ligações com movimentos de esquerda, sendo um fiel e exemplar militar para a época. Apenas em 1967, começou a ter maior envolvimento e informações de grupos que atuavam na época, também aumentando seu interesse por autores como Lênin e Mao Tsé-Tung. Até 1969, ficou ainda envolvido com o exército, atuando das maneiras seguintes. Por certo tempo, ajudava em ações de guerrilhas e assaltos a bancos com os guerrilheiros, provocando algumas dos movimentos revolucionários. Ao mesmo tempo, realizava, dentro do exército, treinamentos para combate de comunistas, até para alguns civis que vissem alguma necessidade de proteção própria.

          É em 1969 que realmente deserta, se tornando um procurado da ditadura militar brasileira. Havia mandado a esposa e os filhos para Cuba, a fim de mantê-los a salvo, enquanto prosseguia na luta armada no Brasil. Mantinha um romance com Iara Iavelberg, psicóloga paulista de rica família que largara o marido médico ao ingressar na militância política. Após dois anos vivendo em aparelhos do Rio de Janeiro, dos quais Iara saía até para fazer cabelo em salões de Ipanema, acabam sendo descobertos e tem de fugir, indo para a Bahia. Carlos a deixa em Salvador e se embrenha sertão adentro, se escondendo e procurando criar guerrilha rural. É acompanhado por Zequinha Barreto, sindicalista e guerrilheiro. Escreve diário e cartas a ela neste meio tempo. Após um tempo, os militares encontram o prédio onde está Iara, cercando num banheiro e matando-a a tiros. Por muito tempo, alegaram ter sido suicídio. Com as cartas recebidas, veem nomes maiores, torturam-nos e conseguem se aproximar de Lamarca. Ele e Zequinha sabem e vão avançando. Os perseguidores avançam com informações de locais. Completamente cansados e desorientados, Lamarca e Zequinha alcançam a cidade de Ipupiara, onde param. São ambos mortos a tiro na sombra de uma árvore na zona rural, distrito Pintada. Haviam sido alcançados pela ditadura. Estavam a 624 km de Salvador.

           Entre tantas figuras que recorreram à luta armada durante o período, Lamarca é uma das mais particulares. Militar em ascensão buscava carreira na área, como maneira de defender a população e garantir a força brasileira, fazendo com que o país fosse grande e forte. Mas as contradições e interesses do Brasil e estrangeiros terminam se chocando neste processo. Por ser essencialmente ligado ao capitalismo, o país se torna, essencialmente, conectado e subjugado por interesses estrangeiros, impedindo que seja forte e coloque suas forças a favor de si mesmo. Menos ainda, está ligado ao povo e as necessidades populares. Do próprio Carlos Lamarca é dita uma das melhores frases sobre o exército brasileiro: “Eu vim ao exército pensando que o exército estava servindo ao povo, mas quando o povo grita por seus direitos é reprimido”. A ditadura foi esta frase escancarada, não só pela destituição de alguém democraticamente eleito, mas por toda a repressão praticada contra sindicalistas, militantes e outros que representam questões populares e problemas sociais mais do que reais no Brasil.

          O ideal pode não ser guerrilha num contexto de realidade nacional, mesmo aqui. A questão gira muito mais em torno de saber proteger o estado democrático de direito e o direito a política, a fazer institucionalmente as medidas políticas. Com estes mecanismos, experimentava os brasileiros a capacidade de reduzir sua tão profunda e cruel desigualdade social, com as reformas de base janguistas. Como exemplo, a questão da reforma agrária, se tivesse sido feita, diminuiria drasticamente os problemas rurais, fazendo com que mais pessoas tivessem acesso a lotes e terras. Por não ter acontecido, dando golpe militar para impedir, a ferida permaneceu e permanece aberta. É dessa realidade não solucionada que surgiu, nos anos 1980, o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST). De questões similares, nas áreas urbanas, surgiu o Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST).

        Quando não se quis resolver, entre outras desigualdades nacionais, tal problema, o que seria possível via institucionalidade, se fez prevalecer à injustiça, rompendo com as regras, leis e constituição. Portanto, se vivia em um estado completamente degenerado, comandado por militares entreguistas e anti- Brasil. A melhor coisa que poderia ter acontecido na política nacional seria a vitória presidencial do marechal Lott em 1960 e seu vice Jango. Lott já havia evitado golpes mais de uma vez, garantindo as posses de Café Filho e Juscelino Kubitschek, além de apoiar a campanha da Legalidade de Leonel Brizola. Através dele, o Brasil poderia ter se mantido democrático, garantindo suas conquistas e qualidades, bem como fazer um governo efetivamente nacionalista que garantisse ao país seu crescimento, solução de problemas internos, fazendo um país mais justo e forte.

     Ainda que o marechal Henrique Lott tenha concorrido como civil, já tendo sido ministro da guerra de presidentes anteriores, o exército teria uma função importante, como tem em todos os países. Precisa defender as estruturas e os governantes de ataques externos e, principalmente, garantir a constituição e as possibilidades políticas internas, impedindo as consequências geradas pelas intrigas e tramas. Teria sido possível garantir maior desenvolvimento e especialmente maior estabilidade interna no governo. Mas também tem questão de não ser positivo internacionalmente uma maior ascensão nacional, por atrapalhar hegemonias econômicas, além de desagradar setores internos.

    Lamarca entendia isso, tendo servido o exército como alguém atrás desta melhoria nacional, através das funções e necessidades militares que os países terminam por ter. Quando viu o entreguismo posto a cabo depois do golpe, que visava interesse políticos e econômicos dos Estados Unidos, destruindo as possibilidades de crescimento nacional, gerando um fajuto milagre econômico que destruiu a economia brasileira, foi percebendo e se desentendendo gradualmente com a instituição. Tinha ideais socialistas que poderiam ter resultado em melhoras na desigualdade, num governo que prezasse por seu povo. Quando viu que o exército não apenas fizera governo de direita, como executava seus soldados de esquerda, já havia atingido o posto de capitão. Tentou manter ainda algum vínculo, mas percebeu ser impossível para aquilo que queria. Tornou-se capitão de guerrilha, liderando movimentos e sequestrando embaixadores como moeda de troca. Em um país de estruturas degeneradas, os movimentos e bases se degeneram também. E os meios armados ganham força. Esta degeneração, promovida por uma série de jogadas e interesses escusos, significam uma perda significativa de possibilidades políticas que poderiam ser feitas de outra forma. O capitão se torna capitão de guerrilha em contraposição ao do esquadrão da morte. Trata-se de um momento de guerra, onde as oposições sociais ficam mais escancaradas do que nunca, havendo momentos bem mais violentos. Mártires surgem nestes momentos que marcam nossas características. Lamarca foi alguém que passou por ambos os setores e acabou sendo morto pelo exército, o qual servira tentando servir o povo. Não sei quando as contradições brasileiras serão resolvidas.     

 

 

 

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