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Pedro Fagundes de Borba

Autor: Pedro Fagundes de Borba

Literatura do norte e literatura do sul

6/3/2022 - Ribeirão Preto - SP

      A identidade brasileira é bastante discutida, sempre buscada. Como um país continental, cheio de regionalidades, surge várias diferenças regionais. Não apenas no Brasil, mas também em vários outros países. Como Argentina, México, Estados Unidos, Índia, Itália, Alemanha e outros. Em todos eles, isso gera uma série de debates sobre a questão cultural. E a questão de identidade coletiva vem à tona. No caso brasileiro, isto ganha uma série de contornos que dividem o país em uma série de regiões, tendo alguns embates culturais e preconceitos, por vezes tomando a forma de xenofobia. Através disso, se discute questões de identidade nacional, e se há de fato semelhanças entre suas regiões.

      Em termos de discutir cultura e identidade, um aliado forte disso é a literatura. Outras artes também, mas a criação literária, por sua grandiosidade inerente, traz sempre aquilo de mais forte, de mais profundo que existe naquilo que coloca e descreve. Uma das maiores qualidades da literatura, se não a maior de todas, é a absorver aquilo que está sendo dito e pensado, para transformar em escrita, em personagens e ficções. Através disto, põe situações e ideias que muitas vezes ultrapassam o conhecido. Quando bem feito, continua ecoando através dos tempos, levantando questões muitas vezes nem tão bem sabidas. Através dela, se lê épocas, ideias, conceitos e profundidades do existente falado. Devido a isso, termina sendo importante para compreender discussões extra literárias. Naturalmente, como as demais artes vão muito além, mas serve junto. Arte enquanto arte são algo bom por si próprio, mas podem falar sobre muitas coisas.             

      No caso da cultura e da identidade, o que é escrito já vem de uma determinada cultura, uma determinada base cultural. Por essa origem, tende a falar dela ou ter construções a partir dela. No caso do Brasil, várias regiões tiveram seus autores que buscavam a identidade nacional, falar sobre os brasileiros e como eles são. Isso gerou vários caldos, várias obras e várias ideias sobre essa identidade, sua composição e se ela é de fato nacional. Vários fatores e características foram usados para determinar se todo o Brasil possui uma grande identidade coletiva ou não.

      Um dos principais, mais clássicos é a questão da identidade associado com questões sociais, gerando culturas. Normalmente, em termos sociais, se vê, grosseiramente falando, uma divisão mais forte entre as regiões norte e nordeste com as do sul, sudeste e centro oeste. Assim ocorre porque, embora o Brasil seja, enquanto país, pobre, e tenha forte desigualdade e problemas em todo seu território, nas duas primeiras regiões, este problema se agrava ainda mais. Para uma visão ou uma leitura literária, isso pode criar quase um país dentro do Brasil, pois se teria uma cultura diferente, gerando um espaço distinto com sua própria realidade e características únicas. Distintas do resto da nação.

       Em parte baseado nisto, junto com outros pensamentos, o escritor cearense Franklin Távora criou seu projeto e concepção literária. Enxergou uma série de diferenças entre as porções norte e sul do Brasil. Sendo um nordestino, conhecia melhor os aspectos sociais, políticos e culturais da região. Exerceu cargos públicos em Recife, Belém e Rio de Janeiro. Por isso, reforçou suas noções de diferença entre duas grandes porções brasileiras: norte e sul. Só seria possível fazer literatura e falar do Brasil reconhecendo a diferença entre as regiões norte e nordeste (norte) com sudeste, sul e centro oeste (sul).

      O resultado principal foi seu romance “O cabeleira”, de 1876, romance focado na figura de José Gomes, cangaceiro pernambucano do século XVIII. É considerada quase uma biografia romanceada, apesar das fontes do autor não serem muito precisas. No caso, seria um narrar da vida desta figura na forma de romance, usando as técnicas literárias para dar maior valor e criar uma literatura localizada. Porém, não havia uma fonte tão exata contando sua história. A principal delas eram passagens nos documentos da história pernambucana, que contava sobre ele, dando rápidas pinceladas.

        Para completar, suas histórias eram narradas através dos cordéis, cantados e escritos. Era uma figura constante nelas, por mexer muito com a imaginação nordestina. Até chegar Lampião, na primeira metade do século XX, José Gomes fora o mais famoso dos cangaceiros. Ambos tinham como marca a questão de serem figuras místicas, pela vida que levaram e o que fizeram. Muita embora a aura heróica de José fosse bem menor que a de Virgulino, era uma figura lembrada e bastante lendária na região.

       Ao longo do livro, são narrados principalmente os assaltos realizados, a maioria com seu pai, Joaquim Gomes. Também fala sobre sua mãe, Joana, como acabou afastado dela entrando para a vida de crimes, a paixão que teve por Luisinha; além de descrever vários de seus ataques e dar detalhes e características da Recife da época, inclusive detalhes herdados da época da invasão holandesa. Ao final, conta-se a emboscada feita pela polícia e a captura de José. Então a narração se concentra em contar a história, falando sobre este personagem, contando a história e descrevendo uma região, sua cultura, costumes. Assim cria-se um tipo de retrato do espaço, da realidade, em uma área do Brasil.

       Durante o século XIX, com a independência, os artistas brasileiros estavam estabelecendo e procurando a identidade nacional. Isso significa que, com a questão nacional surgindo com mais força, precisava ser entendido o país chamado Brasil. Isso significava representá-lo artisticamente, para que fosse conhecido. O nome que mais fez isso durante a época foi José de Alencar. Famoso por seu indianismo é uma figura que, direta ou indiretamente, acabou influenciando muitos dos processos de falar dos tipos sociais brasileiros. Ainda que tenha sido, com muita justiça, criticado pelos colegas e posteriores. Por causa de sua forte influência europeia retratou os brasileiros, mesmo os índios, como europeus, em costumes e pensamentos, afastados da realidade do Brasil e até do mundo, pra ser verdadeiro. Para contrapor isso, Franklin começa a pensar uma forma de literatura que falasse do país como ele era, os tipos sociais e as histórias reais. O livro mais crítico feito a Alencar foi o romance de 1870, “O gaúcho”. Falava sobre o sul do Brasil, região onde o autor nunca esteve. O nível de irreal do livro ficou muito alto, rendendo críticas fortes a ele. Provava o afastamento da literatura com a realidade. Assim, também buscou inspiração nessa história brasileira real para falar sobre a vida real, os atores dela e o enredo de suas peças.

         Embora ainda seja considerado romântico, pela maneira e emoção que põe em determinadas situações e passagens, já traz vários elementos do realismo. Contrariando, logo, ainda mais José de Alencar, que fazia seu idealismo distante. Neste realismo romântico, havia também críticas e divergências a outro escritor importante da época, o Visconde de Taunay. A principal divergência com ele era justamente a questão sobre a identidade brasileira. Enquanto Távora via uma diferença essencial entre o norte e o sul, necessitando de literaturas distintas, Taunay via uma integridade do Brasil culturalmente. Então um gaúcho teria semelhanças e pontos culturais comuns com um amazonense. Ou um maranhense com um capixaba. Um baiano com um mato-grossense e assim por diante. Franklin Távora tinha discordância a isso, devido a várias questões, fazendo em outro estilo. Sua visão não predominou, não tendo muita continuidade, mas serviu como o primeiro romance regionalista brasileiro. Por focar muito em uma região e suas características, deu a questão regional, em se aprofundar num espaço e dar suas características, como parte importante da história. Dessa fonte e formato, surgiriam depois autores como Simões Lopes Neto e Guimarães Rosa. Apesar de consideravelmente esquecido, foi um autor importante para a literatura brasileira. Foi homenageado pela academia como sendo o patrono da cadeira 14, instituição fundada após sua morte.

       A ideia do Brasil é muito complexa, pois é um país enorme, com muita variedade. Por isso, algumas áreas parecem muito diferentes de outras. Mas isso faz parte daquilo que é o Brasil e os brasileiros. Porque nestas regiões, vive-se a realidade nacional, a cultura ali surge do que somos e o que temos. Se não faz sentido falar em literaturas distintas, faz ver o diferente em cada uma delas, pois há particularidades nestes espaços. O regionalismo traz suas maiores fundamentações nisto, dando detalhes e vidas mais locais. Ao final, vêem-se as características e caracterizações do Brasil colocadas nas suas cores e desenhos regionais. Ou seja, como o que é brasileiro em todo o seu espaço ganha forma com o que acontece ali. E aquilo existente somente naquele lugar, diferente de outros. Não há uma diferença nacional grande o suficiente para ter de se criar literaturas separadas, norte e sul. O que existe mesmo é uma literatura capaz de tomar vários tons e peculiaridades para onde estiver falando. Assim, se escreve sobre determinada região, como ela é, e se fala sobre o Brasil, revelando como somos. Franklin Távora deu uma obra importante para isso, mas que não fica restrita ao nordeste. Espalha-se para outras partes.

                       

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