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Pedro Fagundes de Borba

Autor: Pedro Fagundes de Borba

Gildo de Freitas, rei do gauchismo

27/3/2022 - Ribeirão Preto - SP

      Os gaúchos são seres com características muito dispersos, sempre associados com os campeiros do Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, com alguma extensão chegando ao Paraguai e Bolívia. Sendo pessoas que viveram nestes campos, muitas coisas pensaram, muitos aspectos culturais e sociais tiveram. A cultura formada tem como principal base a vida campeira, seus valores e hábitos, bem como as roupas, destacando a bombacha e o tirador.

       Outros são ainda mais profundos, por falarem com os tempos posteriores com ainda mais densidade. O churrasco é um bom exemplo disto, bem como o carreteiro, que tem em outros lugares, mas que se associou forte aqui. Além do elemento símbolo máximo da cultura gaúcha e a mantém viva com mais força que todos os demais: o chimarrão. A bebida de origem indígena faz parte destes lugares desde sempre, sendo um dos momentos de sentar, prosear e beber chimarrão. Nenhum outro objeto ou hábito remete tão profundamente ao que o gaúcho é senão as rodas de mate.  Através dela, sabem os gaúchos reconhecerem uns aos outros e entenderem os gaudérios ali presentes contando seus causos e suas vidas, o que vem acontecendo nelas. Logo, os viventes estão em momento de estarem percebendo e revelando coisas profundas.

        Por causa desta diversidade cultural e volatilidade, fica difícil encontrar algum vivente que tenha sido profundamente gauchesco, mesmo os que viveram nos períodos mais rurais do RS, Uruguai e Argentina. Neste último, o grande escritor Jorge Luis Borges deu as melhores descrições sobre esses tipos sociais e culturais. Bem como quem os registrou e como seu estilo literário e poético foi registrado. Chama a atenção que não foram os gaúchos que fizeram esta poesia ou este estilo, não foram os campeiros gauchescos. Mas sim os homens letrados de cidades como Montevidéu e Buenos Aires. Esqueceu de acrescentar Porto Alegre e Pelotas. Esses letrados, observando a vida dos campeiros, é que escreveram sobre eles, se passando pelos personagens e cantando seu estilo de vida.

        No caso do Brasil, acentuava-se o fato de que os gaúchos funcionavam, para o RS, como uma tipificação social de sua população, dentro da estética romântica. Buscava-se um Brasil fundo, característico, que combinasse com os ideias e visões do romantismo, um dos maiores movimentos literários do século XIX. Esse tipo ganhou muita força no estado a partir do Partenon Literário de Porto Alegre, grupo de literatura e de lutas políticas que enxergou e fez esta representação do povo rio-grandense. Posteriormente, a imagem ganharia mais força em contextos posteriores que a levariam a se consolidar cada vez mais. 

         Borges também observa, no entanto, que isso não a fazia ser menos popular ou autêntica. O fato de ter sido criada por intelectuais, numa representação de rústicos homens rurais, não significa que não possua autenticidade em sua criação, pois fala daqueles através de seu estilo e visão de mundo. A poesia escrita cria identificação com os que são representados, fazendo com que seja poética e real também para eles. Então o estilo se consolida falando sobre aquela realidade, e os próprios gaúchos passam também a ver suas vidas e escrever.

      No Rio Grande do Sul, isso ficou muito visível no movimento nativista gaúcho, que ganhou dois festivais anuais: Califórnia da Canção Nativa e Tertúlia Nativista, que tiveram seus auges nas décadas de 1970 e 1980. Não apenas neles, mas em suas carreiras musicais, os músicos cantavam sobre a vida campeira do estado e as realidades, associados com a imagem e cultura gauchesca, ainda presente de diversas formas. A visão grossa e campeira se fazia presente, dando uma nova poesia, real e bela. Os gaúchos então falavam sobre gaúchos, superando o que Borges apontara nos autores da virada do século.

       Os cantores gauchescos falaram sobre vários aspectos da cultura do estado. Mas aquele que foi mais completo, o mais gaúcho de todos, foi Leovegildo José de Freitas. Conhecido artisticamente como Gildo de Freitas, nasceu em Porto Alegre, no ano de 1919. À época, a capital contava com grandes áreas rurais, muito embora já tivesse também sólida estrutura urbana, principalmente em regiões mais centrais. Nasceu na região do atual bairro Passo da Areia, que era área rural há cem anos.

      Desde sempre teve vontade de ser cantor, de tocar violão. Ao longo das várias dificuldades que teve na vida, foi sempre marcado pela música, pelo gauchismo também, por causa da cultura que conhecia e se juntou. Seu jeito de cantar e escrever são muito característicos por isso, já que fala de maneira grossa sobre vários temas: vida no campo, dificuldades, pobreza, causos, grossuras e, de maneiras mais sutis, política. Em todos esses campos, o ser gauchesco aparecia, estando sempre como o eu - lírico de seus versos. Portanto, é o mais profundo dos cantores e poetas do estilo. Há uma espontaneidade e um jeito em Gildo que transparece, faz entendermos como são os gaúchos, bem como suas filosofias e formas de ser.

        E isso lhe dá esta característica peculiar, assim como um jeito único de versejar. Sendo de grossura genuína, traz para seus versos de forma espontânea e com grande densidade. Consegue puxar seus temas e contar sua realidade e suas visões. Sendo bastante popular, faz seus versos serem conhecidos, cantados e gostados. E é também o gaucho que verseja, por suas características é de fato um grosso gauchesco. Conseguia escrever de tal forma que trazia o espírito consigo e o era de muitas maneiras. O gaúcho grosso estava ali.

       O que significa que Gildo de Freitas carregava junto uma música que falava sobre o povo, sobre seu jeito e refletia tudo isso. Um grande popular, que dava grande densidade popular a suas músicas. Dos outros cantores gaúchos, nenhum fazia tão bem. Ninguém possuía seus dons de versos, ou fazia destes algo tão bem feito. Se o gaúcho alguma vez teve forma, alguém foi bem gaúcho, esse alguém foi Gildo de Freitas. Trazia consigo todo esse ser e com ele cantava, dando expressão e vazão a toda essa cultura. Certamente então é o cantor que melhor encarnou esta visão e aquilo descrito pelos poetas, sendo mais popular do que eles. A grossura e espontaneidade o acompanham, garantindo estilo. E seus versos falam sobre isso, narrando suas histórias e fatos. O melhor gauchesco que já houve. E ficará sendo a maior visão desta cultura e estilo de vida. Gildo de Freitas é o rei do gauchismo.

 

  

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