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Pedro Fagundes de Borba

Autor: Pedro Fagundes de Borba

O poeta bruto

3/4/2022 - Ribeirão Preto - SP

         Algumas correntes, muitas que tem uma visão vulgar e pequena da arte e da literatura, associam uma oposição entre o bruto e o artístico, e aquilo que seria de fato belo e poético. Nada mais longe da verdade. Não há qualquer correlação de uma suposta delicadeza do artista para com o que é a arte de verdade. De fato, há grandes artistas em todas as formas, personalidades e índoles, até mesmo entre as pessoas de mau caráter. Mesmo pessoas mau caráter podem fazer grandes obras. Imagine os brutos então. O ponto central é, por certo, o valor da literatura, poesia e arte.

          Afirmar que apenas os chamados delicados têm interesses ou capacidade de apreciar a arte, ou os únicos que lhe dão valor, é reduzi-la a um mero recreio das pessoas cheias de seus elitismos e achismos. Não podemos tirar a capacidade artística delas também, capazes de influenciar várias outras. Entretanto, estão certamente longe de possuir o monopólio do artístico, pois há outras formas de percepção artística, que também possuem total alcance e profundidade.

        A arte popular é uma expressão disso. Porque o que é ali dito tem conformidade com seu artista, seu público. É também uma representação daquilo pensado. É uma brutalidade poética que a coloca em seu estado mais puro. E por causa disso, há uma grande poesia ali inserida, uma veia lírica que se garante e traz ideias e literaturas dentro dessa grossura. E continua tendo tanta profundidade quantos outros estilos e abordagens artísticas.

         Um dos melhores exemplos disto é o cantor gauchesco José Larralde. Argentino, filho de pai iraquiano e de mãe basca nasceu na província de Buenos Aires. Desde os sete anos, atualmente com mais de oitenta, faz versos, verseja e cria músicas a partir deles. Seus temas favoritos são questões sociais, problemas da sociedade e características da vida gaúcha. O folclore e a política estão muito presentes em suas canções. Seu estilo é bastante másculo no sentido de ser bastante firme e marcado em cantar, bem como as letras. A poesia grossa, gauchesca e os versos que disso saem refletem muito essa brutalidade, jeito de descrever e pensar.

        Sua música “Quem me ensinou” é um ótimo exemplo disto. Sua condução, versos e ideia são assim. Fala sobre quem o ensinou a ser bruto, porque é daquele jeito. Segundo dizem, nasceu varão porque no pique faltava um peão. Criou-se entre doutores de pala, e não quis ser porco. É bastante revirado. Sabe que será sábio quem entender que fome só corta quem tem. Pregou a garra por não querer ser porco. Lastima não entender de língua fina pra ser senhor, e o patrão lhe disse que na Inglaterra se fala melhor. Na pança da mãe não havia escola ou quadro negro, aprendeu de outro jeito. No final, sabe que é osso e carne, alma e consciência, povo e suor. Com tudo isso, se alcança para ser um bruto que lança a voz. Sem mais motivos que a razão de não querer ser porco.

        Esta é uma música de grande profundidade por isso. Pelo personagem que cria, pelas reflexões que coloca e pelo que transmite. Possui um jeito bastante grosso e solto, mas passando grandes ideias. Consegue traçar a figura, dá seu mundo, seu estilo e a poeticidade de tudo isso. Pela grossura, fica ainda melhor, por causa da composição a partir disto. Descreve-se como alguém bruto, com sua linguagem e como vê a partir disto.

        Seu jeito bruto e varonil fica colocado ali. E faz o alçar de voz com tudo isso, para não ser porco. Uma ótima música, de alma grossa e capaz de entender o poético e colocar em seu estilo. Um dos grandes cantores gaúchos de todos os tempos. E fala de uma forma que marca a música e poética de vários jeitos. Fazer assim para ser grande, vendo o mundo ao redor. Um poeta autêntico.        

          

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